17 de jul. de 2014

In the land of the headhunters, de Edward S. Curtis, e Nanook do Norte, de Robert Flaherty

Tradução de fragmento do capítulo 13 do livro Short Nights of the Shadow Catcher: the epic life and immortal photographs of Edward Curtis, de Timothy Egan, publicado pela Houghton Mifflin Harcourt, nos Estados Unidos em 2012:


Quando da primavera de 1914, Curtis havia passado períodos das quatro estações estudando e fotografando o povo que iria estrelar seu filme. Ele estava impressionado com as mulheres Kwakiutl. “Elas mantêm uma aparência muito vistosa após a meia-idade”, ele notou. “Mulheres que já são avós têm seios empinados que fariam inveja a adolescentes.” Os homens, nem tanto: sombrios, “eles parecem completamente perdidos em cismas obscuras.” Mas como passou mais tempo com eles, Curtis focou em seu senso de humor. Ele particularmente gostou de como brincavam com a mente dos missionários. Um dia, George Hunt invadiu a barraca de Curtis com notícias sobre uma grande descoberta cultural feita por um dos clérigos.
“O que é?” – perguntou Curtis.
Hunt caiu ao chão às gargalhadas.
Os Kwakiutl haviam explicado ao missionário o significado das figuras do poste sagrado (totem) – uma coisa e tanto para o clérigo, ou assim ele pensava. “O homem na base, aquele com bigode, é o primeiro explorador espanhol”,  disse Hunt. “Acima dele, uma figura nua, está Adão. A mulher é Eva. E o pássaro no topo representa o Espírito Santo!”

Curtis adorou o drama inerente às tarefas de um dia Kwakiutl. A caça ao leão marinho era cheia de tensão, uma perseguição de vida ou morte a um mamífero de uma tonelada num mar revolto. Um funeral naquela parte do mundo poderia fazer um velório irlandês parecer sedativo, e com frequência durava três dias, tendo um potlatch como ponto alto. E aqueles guerreiros navais em canoas decoradas eram a cena perfeita para um filme. Ainda que Curtis quisesse mostrar os Kwakiutl na época antes da navegação de George Vancouver através do Estreito da Georgia em 1792, ele também intencionava contar uma história bem amarrada e emocionante. Uma que ele e Myers haviam gravado durante encontros anteriores com os Kwakiutl era especialmente mítica e indígena, mas também universal: era sobre a jornada de um homem jovem em busca do amor e da retribuição. O filme deveria seguir Motana, um dos filhos do chefe tribal, numa jornada semelhante às dos gregos antigos. Motana ama Naida e quer desposá-la. Ele aborrece os espíritos uma noite ao pensar em seu amor durante um período de abstinência. Agora ele deve agir ou perecer. Para aplacar os deuses, ele deve matar uma baleia e um leão marinho, sozinho. Sua odisseia o conduz a uma batalha contra o clã rival dos caçadores de cabeça, ambientando um ousado ataque – o clímax – e a vitória, com festejos e a celebração de um grande casamento. Em boa medida, Curtis acrescentou um toque quase trágico ao final.




Como os Kwakiutl de 1914 não se vestissem diferentemente do canadense branco comum vivendo numa pequena cidade costeira, Curtis e sua equipe vestiram os índios com saias de lontra marinha e capas de casca de cedro, concebidas por Hunt seguindo as orientações dos nativos. A produção do filme também patrocinou totens recém esculpidos, uma canoa de guerra de cinquenta pés e uma variedade de máscaras e acessórios. Anéis de pressão para nariz e perucas foram distribuídas. Um protagonista foi escalado – Motana foi interpretado por Stanley, filho de Hunt. Três mulheres Kwakiutl atuaram no papel do objeto do amor de Motana, devido a membros familiares se oporem e impedirem, uma e outra, de continuar participando das filmagens. Com a direção de Curtis, seu jovem ajudante Schwinke manipulando a câmera e Hunt gritando as instruções traduzidas do inglês para a língua nativa, as filmagens começaram para valer no final de maio. Ainda que fosse uma história ficcional, Curtis descrevia seu filme como uma saga de não-ficção, uma tentativa de documentar (ou recriar) como era a vida marítima dos índios do Pacífico antes do contato com os brancos. Eles filmaram por três meses, trabalhando todos os dias na longa luz do norte.
 “Nossas atividades são de tal natureza que deveriam ser chamadas de tarefas ao invés de trabalho, mas tudo corre muito bem”, como Curtis escreveu a Hodge na noite do solstício de verão.
As filmagens mais difíceis seriam as cenas de ação no mar, e para isso necessitariam da cooperação de alguns animais. Curtis comprou, de um comerciante a norte de Prince Hupert, uma enorme carcaça de baleia recentemente sacrificada, e a rebocou até a aldeia Kwakiutl. A baleia funcionou bem para a cena de caça, e Curtis estava tão orgulhoso de seu troféu que posou para uma foto em frente à bocarra do bicho. Ele parece pequeno em comparação, mas o orgulho transparece em seu rosto.
Para as filmagens do leão marinho, Curtis, Myers e Stanley Hunt partiram para um local de procriação há milhas de distância da praia e fizeram vigília. Lá, os leões, alguns deles pesando quase uma tonelada e medindo mais de quatro metros, se arrastaram para fora de uma ranhura de terra exposta chamada Devil Rock. A equipe escalou a pedra, que Curtis calculou medir uns 90 por 150 metros. Curtis se maravilhou com a algazarra de latidos dos colossais leões, os machos rondando seus haréns, como senhores do Pacífico Norte, e as fêmeas menores no cio. O trio descarregou os pacotes com as câmeras, comida desidratada, cadernos de anotações, uma barraca e colchonetes, e Hunt remou para longe, planejando pegá-los de volta no dia seguinte. Eles intencionavam passar a noite para poder filmar os leões ao menos duas vezes na maré baixa. O barco mal tinha acabado de sair quando Curtis fez uma descoberta surpreendente: não havia vida vegetal na ilha. Não havia samambaias, nem pequenos arbustos, nem grama, e nem mesmo lodo de praia. Ao invés disso, encontraram anêmonas, piscinas naturais formadas pela maré baixa e mexilhões brilhantes agarrados às rochas molhadas.
“Você entende a situação?”, perguntou Myers, com algum pânico em sua voz. “Não há madeira flutuante nesta ilha!”
O mapa que tinham demonstrava ter a Devil Rock quarenta pés acima do nível do mar. E quando eles desembarcaram na maré baixa, aquilo parecia preciso. Mas agora era claro que aquele pedaço de terra submergiria completamente na maré alta.
“Sim, Myers. Eu entendo.”
Pouco importava se o mapa era incerto ou se estavam numa ilha errada. Eles estavam no meio da tarde. À meia-noite, nos cálculos de Curtis, eles estariam afogados. A temperatura da água naquela parte das ilhas Queen Charlotte é raramente acima de 4,5 graus Celsius, mesmo nos meses mais quentes. Uma pessoa poderia viver por aproximadamente trinta minutos antes de sofrer uma severa hipotermia, e então morrer. Olhando em volta, Curtis não encontraria um tronco perdido com o qual poderia improvisar uma jangada primitiva ou um flutuador. Ainda assim, eles trabalharam filmando o ritual violento dos leões – magníficas sequências, jamais vistas em uma tela. Então eles foram para o terreno mais alto e esperaram. Quando a noite caiu, a borda da ilha desapareceu. Eles embrulharam as câmeras em mais dois ou três envoltórios. O pôr-do-sol era tarde, bem depois das 10 da noite, e a terra sob seus pés desapareceu antes da luz. Próximo à meia-noite, o mar era calmo, mas a água cobriu Devil Rock completamente. De onde eles estavam, não viam nada, a não ser a superfície lisa e cinzenta do Pacífico. Um vento leve soprou, e os leões marinhos deram as caras por ali. O vapor do mar pulverizou suas faces. A água avançou e invadiu suas botas, até os tornozelos, e depois até os joelhos. A maré chegaria ao seu máximo – mas quando? O medo era que uma grande onda surgisse logo e os carregasse para o mar. Eles estremeceram. Naquela profunda noite de verão, por volta de uma hora antes dos primeiros raios rosas de um novo dia aparecerem no leste, o oceano se estabilizou logo abaixo de suas cinturas.
De Prince Rupert, as autoridades canadenses enviaram um grupo de busca. O grande Edward Curtis há muito se demorava, e foi dado como perdido em meio à névoa desorientadora das ilhas Queen Charlotte. A história foi divulgada por telégrafo e as agências de notícia a espalharam. O New York Times preparou um longo obituário adulatório.
Quando Hunt chegou na manhã seguinte em sua grande canoa, ele encontrou uma trêmula e úmida equipe de cineastas, e seu filho mais jovem sem uma gota de sangue nas faces. Eles tinham hematomas causados pelos tropeços nas pedras escorregadias, estavam exaustos por causa da tensão noturna, mas ainda assim aparentavam estar bem. O filme havia sido salvo.
Hunt começou a rir. “Eu pensei que vocês estivessem todos mortos!”
Assim pensou também o New York Times. Um escritor que havia entrevistado Curtis para um perfil tinha assinado o obituário. Ele gastou vários dias no artigo antes das notícias sobre Curtis ter sobrevivido. Meses mais tarde, quando encontrou Curtis em Nova York, ele o repreendeu.
“Na próxima vez em que se afogar,” disse a Curtis, “por favor, continue afogado.”





Eles filmaram 112 cenas no total, o suficiente para, depois de editado, obter seis rolos, perfazendo uma hora. Pelo fim de julho, Curtis tinha seu filme acabado, incluindo as cenas de batalha: confrontos entre os clãs usando lanças e bastões de madeira. Ao mesmo tempo, as poderosas monarquias da velha Europa e os rígidos governantes do Império Otomano iam à guerra com estardalhaço. O assassinato do arquiduque Ferdinand da Áustria, em 29 de junho de 1914, foi a primeira faísca. Logo, quatro dos maiores impérios mundiais seriam atraídos para a carnificina fazendo uso de medonhos armamentos industriais, num conflito que terminaria no colapso de dois desses impérios. Para Curtis, feliz por ter finalizado In the Land of the Head-Hunter (“Na terra dos caçadores de cabeça”), as armas da Primeira Grande Guerra não poderiam estar mais distantes. Ele fez as malas e zarpou para Seattle.

O filme estreou em Nova York e Seattle em dezembro de 1914. O trabalho de edição foi exaustivo, muito mais do que Curtis esperava, uma vez que ele havia adicionado efeitos de colorização de algumas sequências, uma tarefa que toma tempo.
Na première do filme, Curtis contratou uma orquestra que tocou uma peça composta por John J. Braham, que era conhecido por seu trabalho com Gilbert e Sullivan. Braham havia trabalhado em cima de músicas Kwakiutl gravadas em cilindro de cera que Curtis lhe fornecera. Os pôsteres do filme mostravam esculturas gigantes de cabeças de corvos engolindo um homem quase nu; o que parecia um protótipo 3D, propagandeava: “Oito mil pés de imagens coloridas do maior fotógrafo do mundo!” Os folhetos de divulgação proclamavam: “Todos os participantes são indígenas e todos os incidentes são fatos reais na vida dos nativos.” Um slogan em um pôster dizia:

Um romance aborígene
A maravilha de Edward Curtis
Um drama indígena em imagens

O filme foi um sucesso – entre os críticos. “Uma joia da arte cinematográfica”, escreveu W. Stephen Bush. “O Sr. Curtis encontrou o atalho da genialidade. E ele é extremamente bem sucedido onde outros falharam miseravelmente.” E acrescentou: “Eu afirmo conscientemente quando digo que esta produção estabelece um novo marco na manipulação artística de filmes em que os valores educacionais se misturam ao interesse dramático... Não se trata de um nickelodeon ou qualquer coisa sem valor. Pelo contrário, deve ser bem acolhido pela melhores casas... aquelas que querem dar a seus clientes algo especial.” O poeta Vachel Lindsay, escrevendo em uma publicação sobre filmes, elogiou Curtis por sua “suprema façanha artística” e deu a ele os créditos por ter inovado em vários quesitos: locações de filmagem, enredo, elenco nativo. Até mesmo os estudiosos acenaram com críticas positivas. “Os cenários, os figurinos e até mesmo as ações foram etnologicamente corretos e o interesse dramático da obra foi bem sustentado”, escreveu Alanson Skinner, do Museu Americano de História Natural, em um comentário a Curtis. “Eu acho que você foi bem sucedido em dar vida à etnologia.” No início da exibição no Casino Theatre em Nova York – com ingressos a 25 centavos para a matinê e 50 centavos para a noturna – multidões aplaudiram o filme de pé. Plateias gostaram especialmente das cenas dos leões marinhos em Devil Rock. O New York Times elogiou o enredo narrado “inteiramente do ponto de vista indígena” e maravilharam-se com as sequências colorizadas, creditando a Curtis um real avanço na arte cinematográfica por ter ele criado “novos sistemas de cores”. No Moore Theatre em Seattle, a reação foi igualmente forte. “Uma história poderosa e emocionante”, escreveu um crítico para o jornal Post-Intelligencer. “Uma genuína sensação.” O tabloide de show business Variety se surpreendeu com o realismo, demonstrando admiração pelo fato de que todos os atores do filme eram “autênticos índios americanos” (ainda que na verdade fossem índios canadenses).
A produção do filme estourara o orçamento – o custo total excedeu em 75 mil dólares – o que já era esperado. Uma temporada de uma semana em meia dúzia de cidades arrecadou U$ 3.269,00 – nada desastroso, mas tampouco promissor. Mas uma disputa com um distribuidor para ver quem pagaria pelo lançamento do filme em grande escala o colocou no limbo. O filme ficou interditado, por conta dos litígios. Curtis mal acreditava no que estava acontecendo. Ele havia produzido uma nova obra-prima, como as pessoas diziam, e ninguém mais iria vê-la. Todas aquelas cenas, filmadas pela primeira vez, iriam apodrecer em um porão qualquer? Os investidores, a quem haviam sido prometidos retornos consideráveis, levantaram a voz. Curtis perdera o sono, não se alimentava direito. Ele gastou as solas de seus sapatos andando de um lado para o outro em seu quarto no Belmont e consumiu as linhas telefônicas e telegráficas da cidade enquanto processava o distribuidor, alegando quebra de contrato. Mas o processo não chegaria a lugar algum. Enquanto isso, In the Land of the Head-Hunters ficou sob a custódia dos tribunais.
“Estou lutando pela minha vida e tentando respirar e, ao mesmo tempo, estou trabalhando tão duro que me sinto desgastado para além do limite”, Curtis escreveu a Hodge.

Oito anos depois de In the Land of the Head-Hunters ter surgido e misteriosamente desaparecido, um filme mudo intitulado Nanook of the North – a story of love and life in the actual Artic (“Nanook do norte – uma história de amor e vida no Ártico real”) foi lançado nos cinemas pelo mundo. Seu diretor, Robert Flaherty, havia estudado o filme de Curtis frame por frame e passado uma tarde com Curtis, perguntando-o sobre seus métodos, suas ideias para locação, como trabalhar com o povo nativo. Flaherty tentara fazer um filme sobre os Esquimós, ao mesmo tempo em que Curtis estava terminando “Os Caçadores de Cabeças”, e seu resultado anterior fora medíocre. Como uma cortesia profissional, Curtis explicou como construiu os cenários baseando-se em modelos nativos, contratou somente atores indígenas e no geral tentou criar um mundo perdido de um modo autêntico. Quando Flaherty foi fazer Nanook, ele seguiu o modelo de Curtis. O filme foi rodado próximo à Baía de Hudson. Iglus foram construídos. Indumentárias ao modo antigo foram feitas especialmente para o filme. Cenas mostravam a caça tradicional, a construção de abrigo e a preparação da carne, e incluíam uma sequência excitante com Nanook caçando focas usando um arpão. O filme de Flaherty foi um grande sucesso, e ele foi creditado como tendo feito o primeiro documentário de longa-metragem.

Tradução: Charles Bicalho

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